A partir desta segunda-feira, 23, a retenção de receita médica passa a ser obrigatória para a compra de medicamentos análogos ao hormônio GLP-1, como Ozempic, Wegovy e Mounjaro, indicados para o tratamento de diabetes tipo 2 ou obesidade.
A medida foi determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em abril deste ano, ampliando o controle sobre a venda desses produtos. Até então, a exigência era apenas de apresentação da prescrição no momento da compra.
Na prática, agora as farmácias não poderão mais devolver a receita ao consumidor: o documento ficará retido, como ocorre com antibióticos e remédios controlados. A validade das receitas será de até 90 dias a partir da data de emissão.
O objetivo, diz a agência, é proteger a saúde da população, especialmente diante do elevado número de eventos adversos ligados ao uso dos medicamentos fora das indicações aprovadas no Brasil.
No entanto, segundo a Anvisa, profissionais médicos ainda poderão prescrever os medicamentos para finalidades diferentes das descritas na bula. Essa prática, conhecida como uso off label, acontece quando o médico entende que, para determinado paciente, os benefícios do tratamento superam os riscos.
Desvio de finalidade
Segundo dados apresentados em reunião da Diretoria Colegiada da Anvisa, quando a medida foi debatida, 45% das pessoas que usam medicamentos à base de semaglutida ou tirzepatida não possuem prescrição médica. "E, dentro desse grupo, 73% relatam nunca ter recebido qualquer orientação profissional", divulgou a pesquisadora Thamires Capello, do Centro de Pesquisa em Direito Sanitário da USP.
Ainda de acordo com o levantamento, 56% dos usuários utilizam os fármacos com o objetivo de emagrecimento, sendo que 37% não apresentam sobrepeso ou obesidade - o que revela um desvio de finalidade. "A banalização do uso compromete o acesso para quem realmente precisa", completou Thamires. Mais da metade daqueles que realmente necessitam dos produtos (54%) relatou dificuldade de encontrar o medicamento nos pontos de venda.
Também durante a reunião, Renato Alencar Porto, representante da Interfarma, chamou atenção para o aumento expressivo na importação ilegal de insumos farmacêuticos ativos, o que indica uma possível produção em larga escala, excedendo os limites do uso individual. "Entre 2023 e 2025, o Brasil importou 17,8 kg de semaglutida, quantidade suficiente para produzir cerca de 4 milhões de canetas de Ozempic. Já da tirzepatida, que sequer foi aprovada no País, foram 10 milhões de doses, o que daria quase 2 milhões de canetas", disse.
Aprovação entre sociedades médicas
A obrigatoriedade da retenção de receita começou a ser debatida em novembro do ano passado. Em dezembro, uma carta aberta sobre o tema foi divulgada pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso) e as sociedades brasileiras de Diabetes (SBD) e Endocrinologia e Metabologia (Sbem).
No documento, as associações apontaram preocupação com a popularização do uso do medicamento para fins puramente estéticos - uso não aprovado em bula - e sem acompanhamento médico adequado. À época, elas definiram a não retenção da prescrição como lacuna que facilitaria "o acesso indiscriminado e a automedicação, expondo indivíduos a riscos desnecessários".
Esses medicamentos têm a tarja vermelha, o que significa que "oferecem risco intermediário de efeitos adversos ao usuário e devem ser prescritos pelo profissional de saúde", definem. "O que estamos assistindo hoje são as pessoas olhando em blogs, internet, e indo comprar essas canetas para perda de peso. E elas, muitas vezes, não têm noção de que os análogos de GLP-1 possuem algumas contraindicações, e que a dose precisa ser individualizada", afirmou Fabio Trujilho, presidente da Abeso, em entrevista ao Estadão.
O que já disseram as farmacêuticas
Procuradas pela Estadão à época das discussões, antes da aprovação da retenção da receita, as farmacêuticas detentoras de todos os medicamentos que seriam impactados pela nova medida se manifestaram sobre o debate.
A Novo Nordisk, fabricante dos medicamentos Ozempic, Wegovy e Saxenda, destacou que a proposta não resolveria os problemas de automedicação, uso off-label e falsificação. "Além disso, pode colocar em dúvida o perfil de segurança dos análogos de GLP-1, desestimulando pacientes que dependem deles cotidianamente com orientação médica e aumentando o estigma que existe sobre o tratamento contínuo de doenças crônicas como o diabetes e a obesidade", disse.
A Eli Lilly, responsável pelo Mounjaro - que no período ainda não havia chegado ao Brasil - reforçou que seguia as regras da Anvisa e se colocava como contrária ao uso do medicamento off-label. "Não endossamos o uso off-label de nossos medicamentos e reforçamos a importância de que todo o tratamento seja acompanhado e prescrito por um médico após a avaliação do caso de cada paciente".
A Sanofi, detentora do Soliqua, declarou que: "Reafirma seu compromisso em trabalhar com todos os atores do sistema de saúde por meio do diálogo contínuo em prol de decisões que sejam baseadas em evidências científicas e no melhor benefício aos pacientes". (Com Victória Ribeiro e Leon Ferrari)